OUTRAS HISTÓRIAS

01/06/2011 19:45

  

 

Aprendiz

Geni Oliveira

 

 

   Eu nunca soube definir felicidade. Acho muito complexo esse sentimento. A vida é feita de momentos, alguns especiais. Experimentei uma emoção indescritível quando nasceram meus filhos. As palavras pareceriam vazias. A felicidade é tão intensa que chega a doer.

   Minha filha nasceu num hospital do interior. A paisagem vista pela janela era impressionante. Galhos de árvores balançando-se ao vento como se fossem mãos amorosas abraçando algo. Passarinhos curiosos espiavam através da vidraça. Para minha surpresa vi uma cabra pastando calmamente. E, ao lado dela, um cabritinho equilibrando-se em suas pernas franzinas. Comparei-o com minha filha, dependendo de mim para tudo e que levaria, pelo menos, um ano para caminhar.

   Enternecida, pensando nos dois bebezinhos, na minha filha e na filhinha da cabra, olhei para a TV. Jornal Nacional. Com preguiça de trocar de canal (não havia a facilidade do controle), assisti à notícia de um menino que matou três colegas e feriu gravemente a professora numa cidade dos Estados Unidos. Não vi ódio em seus olhos. Apenas um vazio como se não tivesse mais nenhuma humanidade. Minha filha dormia tranquilamente nos meus braços. E eu chorei. Pelos mortos, pelo assassino e por suas mães.

   Ao sair do hospital com minha filha enrolada num xale branco enfeitado com fitas coloridas, eu era a mulher mais feliz do mundo. Meu marido abraçou-me carinhosamente. Queria mostrar a filha a todos. O taxi esperava-nos na calçada. Próximo à porta do hospital havia uma escada. Evitei-a. Dizem que dá azar passar embaixo de escadas. Para que arriscar? Eu precisava de muita sorte. E minha filha também. Não é fácil criar filhos. Dúvidas, medos e um sentimento de culpa imensurável. Erros e acertos. A história de vida de cada um sendo escrita sem a possibilidade de ser passada a limpo ou reescrita. Emoções compartilhadas e um amor incondicional. Afinal, aprende-se a ser mãe sendo.

 

 


 

A quem interessar possa

 

Geni Oliveira

 

    Lá está ele. Branco, com seu nome em destaque, letra desenhada. Entre contas para pagar e promessas bancárias de felicidade. Lauren pega o envelope, procura o remetente e não o encontra. Pelo carimbo dos Correios e Telégrafos vê que é de Rio Grande. Cantarola uma música antiga:

    Quando o carteiro chegou e o meu nome gritou com uma carta na mão...

    Ela abre o envelope. Uma carta anônima. Seu primeiro impulso é jogá-la no lixo. Já se aborrecera por ter lido cartas anônimas quando ainda era casada. Mas aquela letra miúda e irregular não lhe é estranha. Decide lê-la.

 

    Lauren

    Talvez seja abuso da minha parte te escrever. Pensei em publicar uma carta aberta num jornal de grande circulação com o título A quem interessar possa. Mas ao te ouvir numa entrevista da Rádio Pampa falando sobre o que escreves com tanta sensibilidade achei melhor enviar para ti. Não foi difícil descobrir o teu endereço com uma de tuas amigas. Nós nos conhecemos, mas prefiro não me identificar.

    Aprendi a encarar os meus medos. Mas agora é diferente e ninguém tem tempo ou vontade de me ouvir.

    Às vezes, acordo e tenho a impressão de que estou num lugar totalmente estranho como se voltasse de uma longa viagem. Sinto que, a cada dia, me perco cada vez mais de mim. Algo está ocorrendo. Não é por desatenção. E o meu medo é não saber mais quem sou ou quem fui. Deixar minha filha órfã de mãe viva, não reconhecer minha netinha.

    Lauren, pior do que a morte é a alienação. Corpo são, mente deteriorada, presa no passado e ignorando totalmente o presente. Tenho medo de me tornar agressiva e ainda mais teimosa do que normalmente sou ou simplesmente não reconhecer meus amigos. Peço de coração que se lembrem daquela que fui, o Oráculo, sempre buscando respostas e que, de repente, não consegue organizar as ideias ou repete as mesmas coisas inúmeras vezes. Se isso acontecer espero que me perdoem. E não riam disfarçadamente nem olhem para mim como se eu fosse louca.

    Estou providenciando exames, conversando com minha cardiologista, médica especial que me ouve e não minimiza as minhas queixas. São mudanças sutis que percebo quanto a minha memória. Farei o que puder, lutarei com todas as forças para não sucumbir.

 

    Lauren dobra a carta delicadamente. O papel tem cheiro de jasmim. Guarda- a numa gaveta e liga o computador. E começa a responder a carta anônima com a frase A quem interessar possa. Escolhe cuidadosamente as palavras e devidamente assinada envia para o Jornal Agora de grande circulação em Rio Grande.

 

 

Noite de São João

Geni Oliveira

    Dois cavaletes fecham a rua. Observo as chamas e me sinto aquecida. Não são apenas a fogueira e o quentão os responsáveis. É a alegria das crianças, o calor da amizade. Todos se conhecem.  Sabem das tragédias de cada um. Mas aquela é uma noite de confraternização.

    Nem sempre foi assim. A terra encarregou-se de cobrir para sempre alguns vizinhos. A Morte, como numa loteria macabra, escolheu velhos e crianças enlutando as famílias. Vizinhos desconfiados trancados em suas casas.

    Fazia muito frio naquela noite. O ar estava impregnado de   cheiros: cachaça, pipoca, amendoim. Cada um dava o melhor de si para o êxito da festa. Não faltavam as tradicionais  músicas e danças, unindo gerações. De repente, perceberam  que trovejava. Relâmpagos afastavam as nuvens negras.

    A chuva se encarregará de limpar a rua. Todos irão para casa com a alma mais leve. Haverá risos e lágrimas, algumas fofocas, bolas furadas por alguns vizinhos ranzinzas, mas restará a certeza de que também serão capazes de conviver esquecendo o  egoísmo.

 

Restaram apenas as pedras

Geni  Oliveira

        Naquele distante dia de julho, percebi o quanto estava só. Meus passos ecoavam pelo apartamento vazio. Não fosse a presença do Kevin, ninguém notaria se eu não voltasse para casa. Ele miava, cheirava tudo, olhava para mim como se perguntasse quando a Janice, minha filha, voltaria  para casa. Não foi fácil para ela se mudar para Porto Alegre. Eu me fiz de forte, falei que não se preocupasse. Eu sempre soube que os filhos não nos pertencem e que é preciso lidar com as perdas e as ausências da melhor forma possível.

        Os vizinhos que moravam em frente ao meu apartamento perceberam a minha tristeza disfarçada e me adotaram. Conversávamos no corredor. Luiz e Luiza. Brincávamos com a coincidência dos nomes. Eles tinham uma comadre chamada Gema e uma amiga com o nome de Clara. Kevin aceitava que Gabriela, a filhinha deles de cinco anos, fizesse  carinho nele com moderação. Rafael, pré- adolescente, mostrava seus temas e pesquisas. Gostava muito de falar da vida dos dinossauros. Aos poucos, fomos nos tornando amigos. Convites para um café, o almoço de domingo, um passeio nas tardes de sábado. Luiza ensinou-me a fazer crochê. Meu primeiro trabalho foi uma cortina de barbante para a minha filha que se surpreendeu com essa minha nova habilidade.

        Todos os meses eu viajava para Porto Alegre. Precisava ver se minha filha estava bem. O final de semana passava rápido demais e combinávamos a próxima visita. Meus vizinhos ofereceram-se para cuidar do Kevin na minha  ausência e não mediam esforços para manter limpa a caixa de areia e alimentá-lo. Até mesmo conversavam com ele para que não sofresse tanto com saudades de mim.

No apartamento deles, entre a sala e a varanda, um aquário com peixes raros, plantas, pedras coloridas. Decoração admirada por todos que os visitavam. Não gosto de peixes trancafiados nem de pássaros em gaiolas. Mas aquele aquário quase do tamanho da parede com  todos os cuidados necessários aos peixes era muito especial.

        No verão, Luiz alugou uma casa na praia. Dez dias de férias. Ofereci-me para alimentar os peixes. E o fiz com todo o  cuidado, seguindo as instruções recebidas. No meio da semana, notei algo muito estranho. Os peixes imóveis, comida na água um tanto turva, e o susto. Um dos dispositivos do aquário havia caído e tinha afundado. Gelei. Meu coração bateu descompassado. Nesse momento, percebi o verdadeiro significado de olhos de peixe morto.

        Não cheguei a pensar em me matar como o personagem de Simões Lopes Neto, no conto Trezentas Onças. Mesmo que eu tivesse como indenizá-los, há coisas que o dinheiro não compra. O momento da escolha  de um determinado peixe, a descoberta de um peixinho diferente, a dança deles no aquário, as cores cintilando com os reflexos do sol.  Alguns tinham até mesmo nomes próprios. Eu poderia colocar o apartamento à venda, evitar encontrá-los no corredor, consultar um psiquiatra  e pedir que atestasse um surto momentâneo. Ou enfrentar o problema.

Na casa da praia não havia telefone. Eles haviam me convidado para visitá-los no final de semana. Procurei o endereço. No ônibus pensava na melhor forma de confessar o peixecídio doloso que cometera. Como atenuante, apenas a minha ignorância.

        A alegria deles ao me receber, fez o meu coração ficar mais apertado. Perguntaram pelo Kevin e eu com medo que perguntassem pelos peixes. Fomos à praia, descemos e subimos pelas dunas. Tentei falar no assunto que me afligia e engolia em seco. As palavras não saíam. Deixei para contar no dia seguinte.

        Dormi mal, tive pesadelos. Eu me afogava num grande aquário e os peixes me olhavam famintos, de olhos arregalados. Acordei com o cheiro de café. Tomei banho. Estranharam a minha aparência, com olheiras fundas, um sorriso amarelo. O estômago embrulhado,  comecei dizendo que algo estranho acontecera com os peixes. Eles não estavam nadando. Percebi a troca de olhares do casal. Luiz falou que eu não me preocupasse. Iriam  à cidade e resolveriam o problema.

        Na viagem, arrependida de não ter voltado de ônibus,  eu mal falava. Entrei com eles no apartamento. Não havia o que fazer. O jeito era esvaziar o aquário.

        Restaram apenas as pedras.

 

 

 

   Sabotagem

Geni Oliveira

    Depois de tanto insistir, Marcos conseguiu o tão esperado encontro com Clarice. Passou o dia todo pensando nela. Sua colega tornara-se uma obsessão.

    Chegou em casa, tomou uma cerveja, passou a camisa que comprara naquela tarde. Após a separação e tantos encontros frustrados esperava que desta vez fosse, pelo menos, tratado como gente e não apenas como objeto de desejo. O sorriso de Clarice, o olhar que tudo prometia davam-lhe essa esperança. O casamento tornara-o amargo, descrente. Namorar era tudo que precisava.

    Dirigiu-se ao banheiro. Desta vez o banho seria mais caprichado. Pensara até em usar um óleo aromático, mas achou exagero. De repente, faltou luz e imediatamente a água morna e gostosa transformou-se em pingos.

    Marcos entrou em pânico. Todo ensaboado, precisava agir rápido. Usaria água mineral. Saiu do box, espichou o braço para pegar a toalha, escorregou e bateu com a cabeça na pia.

    Não sabe quanto tempo ficou desmaiado e totalmente nu naquele piso frio. A água do chuveiro escorria barulhenta e a luz forte agravava a sua dor de cabeça. Muito tarde para ligar. O que diria?

    Terminou o banho rapidamente, colocou gelo no galo que se formara. Pensava o que faria para reconquistar alguém que ainda nem conquistara.

 

Mãe,  cheguei!

Geni Oliveira

 

    Quando cheguei de madrugada, a cama estava vazia. A colcha de crochê bege sem nenhuma dobra, os travesseiros intactos. Não era comum minha mãe sair à noite. Tão indignado estava quando saí de casa, depois da briga com Estela,  que nem pensei em ligar.  Precisava desanuviar a cabeça.  Eu ainda tinha a chave do apartamento e o meu quarto permanecia como se eu ainda ali morasse.  Refúgio seguro e colo de mãe era o que eu mais precisava. Al Pacino aproximou-se vagarosamente cheirando o ar e esfregou a cabeça em minhas pernas. Percebi o quanto ele envelhecera. Olhos embaçados, pelo sem  brilho.  Miou como se quisesse me contar algo.  Excesso de imaginação ou remorso?

    Nas últimas semanas eu me descuidara dela. Respostas apressadas, convites recusados.  Qualquer dia apareço, eu falava mais para me livrar da cobrança. Quero te ver, filho. Que bobagem, eu pensava, ver para quê?

    Tudo isso me passou pela cabeça enquanto a procurava no banheiro, na cozinha, na sala, na varanda. Talvez tivesse batido a cabeça, desmaiado. Era diabética, hipertensa. E, como o gato, também estava velha, embora eu não quisesse admitir. Chamei por ela. Em vão. Já estava procurando o telefone de uma tia, quando ouvi barulho no fundo do corredor. Estranho. Meu quarto com a porta fechada?  Na casa de minha mãe as portas sempre ficavam abertas. Ouvi vozes e gemidos.

     Assustado, peguei um castiçal de bronze na estante. Estranho. Um vaso com rosas vermelhas. Sem porta-retratos da família.  Reconheci a risada de minha mãe. Teria enlouquecido? Não se ouvia risos nessa casa desde a morte de meu pai.

    Abri a porta devagar. Não queria assustá-la. Estupefato, olhei minha santa mãezinha. Seu rosto estava afogueado e as mãos suada cobriam os seios nus.  Apresentou-me o namorado. Nervoso, apertei a mão estendida, imaginando se estaria nu sob os  lençóis.  Olavo, ao seu dispor, falou com voz firme. Não me esperavam. Foram para o meu quarto  porque a televisão era maior.

    Só então percebi, na tela, a cena congelada de um filme pornô. Vi que não podia fazer nada. Eu não tinha forças e fugi.