CONTOS DIMINUTOS

13/05/2019 19:38

Vergonha

Geni Oliveira

Fazia muito frio e,  para piorar, chovia. No corredor de ônibus,  um homem pela metade, com o que lhe restava enrolado em plástico, aguardava. Não sei bem o quê. Se um ônibus, uma esmola, um olhar. Ele estava bem agasalhado, com uma jaqueta de náilon e tinha uma mochila. Será que tinha família? Olhei-o nos olhos. E um desconforto enorme tomou conta de mim.

O que fazer nessa situação? Ele tem o direito de ir e vir, dirão alguns. Ir como? Arrastando-se? Como fará para embarcar no ônibus? Alguém o erguerá?

Não sei a sua história. Apenas sei que, naquela tarde fria, vi um homem sem  pernas, no chão molhado, à espera.

 

Sala de espera

Geni Oliveira

            A moça entrou na sala e todos os que ali estavam a olharam. Magra, alta, maquiada, cabelos compridos, blusa decotada, short moderno, bem curtinho e botas até os joelhos. No colo, um nenê. Ela sentou-se e ficou esperando o chamado para o exame de raios-X. Abraçava o filho com muito amor, falando baixinho com ele. Os braços do menino enlaçavam-se em seu pescoço com delicadeza e o olhar dos dois era de amorosa cumplicidade.

 

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O Rapto

Geni Oliveira

Rhael raptou as moças na tribo vizinha, montou-as na garupa e saiu a galope. Exibiria as duas  como troféus e nunca mais ririam dele por não ter mulher. A mais moça, ainda uma menina, chorava. Precisaria ensinar-lhe muita coisa. A mais velha, com olhos negros, boca carnuda e seios fartos havia cuspido-lhe na cara. Essa daria muito trabalho, mas ele sabia como domá-la. Antevia noites de prazer. Um arrepio percorreu-lhe o corpo e esporeou o cavalo. Se não estivesse com tanto medo, daria uma paradinha para dar-lhes uma amostra do que as esperava.

Ele não admitiria ser rejeitado depois de tanto trabalho e de tanta coragem

 

 

 

 

Desvario

Geni Oliveira

            De túnica fúcsia, sapatos dourados e uma guirlanda de flores coloridas  na cabeça,  a mulher atravessa  a Praça da Alfândega.  Porte de rainha,  olha desconfiada para os lados, estranha a própria sombra. O sol espia por entre os galhos formando arabescos no caminho de pedras diminutas. Ela desvia dos desenhos.

             Em frente ao Margs, ela para. Que ousadia! Pintaram meu  castelo de amarelo e nem me  comunicaram. Balança a cabeça desgostosa.

            Sobe lentamente os rústicos degraus que levam á entrada. No saguão, olha em volta. Até tapete vermelho colocaram na escadaria,  pensa e sorri. Entra no salão. Ao ver móveis, roupas e porcelanas da época do Império, seus olhos brilham.   Ela  se posiciona entre alguns vestidos de seda . Totalmente imóvel,  quase sem piscar, compõe perfeitamente o cenário.

            Ao final da tarde, o vigilante percorre as salas. Tudo em ordem.  Desliga as luzes, fecha a porta, desce e entrega a chave na portaria, satisfeito por mais um dia tranquilo no museu. 

 

Indecisão

    Geni Oliveira

            No acampamento abandonado, apenas corpos, sangue, fumaça e gemidos. O inimigo fora implacável. Ismail conseguira fugir com a família. Assustado, o cavalo firmou as patas dianteiras. Difícil convencê-lo a prosseguir.

            Ismail teria que seguir em frente se quisesse sobreviver. Talvez tivessem que abandonar os cavalos e fugir a pé, escondendo-se no mato. O cheiro da fumaça era sufocante.      Precisava decidir-se rapidamente, pois ouvia atrás de si o tropel de cavalos. Os invasores não desistiriam. Antes morrer do que deixar sua mulher e filha serem estupradas como vira acontecer com muitas mulheres na frente   de seus pais e irmãos. Tentaria despistar os perseguidores. A garganta seca, o coração apertado e o peso da decisão tomada. O fogo se alastrava rapidamente. Precisava de muita coragem. Que Alá os protegesse!

 

Finitude

 

O Sol desmaia no horizonte. Em breve, a escuridão engolirá os tons alaranjados refletidos na neve. Ao longe, o pio de uma coruja assusta José. Lágrimas escorrem-lhe pelo rosto. Nunca se perdoará por ter deixado a mulher sozinha na cabana a sua espera.         Não fosse tão grosso o saco de aniagem em que carrega o que resta de Abigail, deixaria um rastro de sangue pelo caminho onde seus pés afundam.  O urso fugiu após saciar a fome. José não o odeia. Aprendeu com sua mulher a amar os animais, mas não poderá passar a noite na cabana. Sabe que, no vilarejo próximo, há um médico. Não tem pressa, mas precisa fazer algo. Mesmo que seja providenciar um atestado de óbito.