CONTOS E CRÔNICAS

01/06/2011 19:19

 

A porta- Primeira Parte

Hoje eu fui tratada como suspeita na porta de um banco. Tive que me despojar do celular, das chaves, dos estojos dos óculos de sol e de leitura, da niqueleira. Fui e voltei várias vezes, numa coreografia não ensaiada. As pessoas atrás de mim já me olhavam com certa desconfiança. Eu, cada vez mais séria, agravava a situação.

Depois de tantas idas e vindas atrás da faixa amarela, a guarda (será que guarda tem feminino na nossa sociedade machista?) pediu para ver o conteúdo inocente da minha bolsa que estava causando tanto transtorno nesta cinzenta manhã de maio. Nada suspeito. A porta foi, finalmente, destravada. Para meu azar derrubei as chaves no chão e perdi a vez na fila.

Ainda ouvi o comentário de um cliente dizendo que eu deveria estar nervosa. Que vexame! Tenho inveja das pessoas que conseguem entrar no banco diretamente. Será que tenho aparência de terrorista e não sei? Estou até pensando em pedir uma carta de referência para os amigos bancários, aposentados ou não, da oficina literária do Alcy, para evitar futuros constrangimentos.

 

Geni Oliveira

 

19/05/2009

 

 

A porta- Segunda Parte

Geni Oliveira

 

Todos os meses preciso ir ao banco fazer depósito  na conta da minha filha. Faço-o com o maior prazer, pois recebo vale-transporte, vale-alimentação e talvez seja até mesmo escolhida a “Mãe do Ano”, mas sempre enfrento o mesmo problema: a porta do banco.

Como no mês passado não fui barrada, hoje cheguei confiante. Retirei tudo da bolsa. Foi inútil. Após várias idas e vindas, desta vez mais fácil, pois já estou familiarizada com a faixa amarela, a moça responsável pela vigilância (ainda não descobri se é certo dizer a guarda), pediu-me gentilmente para mostrar o interior da bolsa. Pensei até em me valer dos nomes dos colegas da oficina literária que são   gerentes da Caixa Econômica Federal ou do nome do Marcos, marido da  minha amiga Liliana, mas não achei legal lançar mão do “sabe com quem estás falando”. A fila crescia atrás de mim. Abri a bolsa suspeita, apesar de considerar humilhante olhos indiscretos vasculhando tudo em busca de estilete, faca, bomba, pistola ou qualquer outro objeto suspeito. Finalmente, consegui entrar.

02/07/2009

A porta- Terceira Parte

Geni Oliveira

 

Neste mês resolvi seguir o conselho do meu amigo Perini. Despi-me de toda vaidade para ir ao banco fazer o depósito mensal para a minha filha. Brincos, correntinha, pulseira, relógio e anéis foram deixados em casa. Escolhi uma roupa desprovida de botões e uma bolsa sem enfeites de metal.

Cheguei confiante à agência, na esperança de recuperar a minha autoestima que a “guarda” tenta de todas as formas colocar em baixa.  Depositei  o celular e as chaves no lugar adequado. Voltei para trás da faixa amarela. Depois de tantos ensaios não tinha como errar. A porta não foi travada. Passei de cabeça erguida e com um sorriso nos lábios.

 Ouvi a voz rouca da guarda dizendo para um senhor idoso fazer a famosa coreografia, pois, despreparado, deveria ter algo suspeito nos bolsos.

Subi as escadas sentindo-me, finalmente, vitoriosa.

 

04/8/2009

 

Resiliência

Geni Oliveira

 

    Lauren andava distraída pelo Centro de Porto Alegre. Era um dia ensolarado. Olhava as pessoas sem vê-las, pensando nas mudanças ocorridas em sua vida nos últimos meses. Músicos em frente ao Mercado Público tocando ritmos diferentes que se cruzavam numa dissonância de causar arrepios. Cheiros adocicados de perfume barato misturando-se ao de frutas podres. Viu algo no chão. Um livro. Parecia que só ela estava vendo-o. Olhou para os lados, abaixou-se discretamente e pegou-o. Era pesado. Folheou-o rapidamente. O título deixou-a espantada. Livro de Lauren. Ficou curiosa e foi rápido para casa.

    Steven viajara a trabalho. Ela estava só, mas era uma solidão gostosa, diferente do que sentira no passado. Abriu o livro. Não havia prefácio nem orelhas. Também não era dividido em capítulos. Leu as primeiras frases. Falava de sua vida atual, do carinho de sua filha, do encontro com Steven e do quanto ela sentia-se realizada como aluna da oficina do Alcy, principalmente com seus colegas.  Hudson, que quase morrera há algumas semanas, Pedro, com suas inúmeras aventuras e Euclides, embora considerasse este último um pouco abusado. Logo a seguir, falava de sua mãe e do quanto a vizinha a ajudara a criar os filhos, muitas vezes evitando um infanticídio.

    Lauren ficou assustada. Quem seria o autor? Havia várias páginas sobre o seu namoro com Valdir, os dois na praia, beijos salgados, corpos adolescentes tentando conter o desejo. A década de 70, com acontecimentos marcantes em sua vida. Páginas ilustradas com fotos. O casamento, a formatura na faculdade de Estudos Sociais e o nascimento dos filhos. Foto sua com Viviane nos braços. Seus grandes olhos reconhecendo-se e intensificando um amor iniciado ainda na gestação. Algumas páginas manchadas. Com o nascimento de seu segundo filho Lauren aprendeu que o amor de mãe não se divide. Ao contrário, se multiplica. Ama-se os filhos de forma diferente, nem mais, nem menos.

    Sobre sua infância havia muitas lacunas. Fotos amareladas. Sua avó, nas raras visitas. Lauren era muito parecida com ela. Seus pais ainda moços, sua mãe sempre séria. Seus filhos ainda crianças brincando na pracinha e Lauren  com medo que se machucassem, tentando protegê-los. Percebeu muito cedo que,  em certos momentos,  somos impotentes, principalmente diante da Morte.

    Muitas passagens de sua vida que preferia esquecer.  Pouco dinheiro e muita imaginação. Arroz com bolinho de arroz, bis como dizia um vizinho seu. Arroz com picles, conservas das amostras de Valdir que estava trabalhando como representante de uma indústria de alimentos. Ela tentava manter o bom humor, criando um cardápio para distrair os filhos.

    Professora, tinha que ensinar sobre alimentação saudável para alunos ainda mais pobres do que ela. Sabia que muitos passavam fome. Nessa parte as páginas estavam manchadas. Não dava para ler. Em uma delas  havia uma relação de seus ex-alunos que já morreram. Neide, de meningite, Renata vítima de um câncer na boca, Renan assassinado, um cujo nome estava manchado, num pega de motos. Vidas roubadas tão cedo.

    Curiosamente, as outras folhas estavam coladas. Ela não teve coragem de abrí-las. Folheou mais um pouco. Seu retorno a Rio Grande, muito a contragosto. A casa alugada, em processo de deterioração, invadida pelas águas numa época de enchente. Viviane com pneumonia. Seu pai ajudando-a sempre apesar da raiva que sentia pelo  genro. Lauren defendendo-o, ajudando-o e acreditando que ainda poderia ter a família imaginada na adolescência como as dos romances que lia. Muitos domingos arrumando a casa, apesar de saber que casa não passeia como sempre repetia seu amigo Ricardo nos seus momentos de bom humor. Afinal, quem não tem dinheiro também não tem como passear. O jeito era  tornar o ambiente mais agradável, apesar do testemunho de pobreza de móveis desconjuntados, de portas e de janelas precisando de consertos. Valdir, que cuidava tanto da aparência, não se preocupava com esses detalhes.

Livro de difícil leitura, parecendo uma caixa preta mais hermética que a dos aviões.    Falava de poesias rasgadas, extraviadas ou colocadas ao lado de contas para pagar. Lauren lia bastante nessa época, mas não fazia mais poesias, pois descobriu que escrever dói demais. Talvez haja um tempo para ler e um tempo para escrever. Suas poesias mostravam o quanto ela amara o marido e o quanto havia se anulado.  Se eu te perdesse perderia o meu mundo, a vontade de viver.  Quanto romantismo, quanto amor desperdiçado e incompreendido! 

     Repentinamente, o livro voltava para sua infância. Inveja dos vestidos das amigas, de um tecido fino, bordado, bem diferente dos seus de tecido barato. Seria necessário usar números negativos para expressar a sua autoestima. Tímida, estudava e destacava-se sempre, mas pensava que obtinha  tão bom  resultado. porque a  sua turma era fraca. 

     Nesse livro tão estranho havia até mesmo fotos de seus gatos. Kevin, com 13 anos e com problemas cardíacos cujos pelos foram molhados durante muito tempo por lágrimas fugidias de sua dona em momentos de solidão. E Meg, cuja cegueira não foi percebida de imediato, tal a adaptação da gatinha tão amada e tão arisca. Presenças constantes, amor incondicional.

     Lauren acordou chorando e com uma sensação de vazio.  Durante todo o dia pensou no sonho que tivera. Lembrava apenas que lera um livro com algumas fotos, várias lacunas, algumas passagens incompreensíveis e muitas folhas coladas. Indagava-se porque, apesar de ser tão curiosa, não as descolara. Que mistérios ocultariam?

    O mais estranho é que apesar de muito manuseado e até mesmo com algumas folhas arrancadas, sua capa dura continuava intacta.

 

 

 

 

 

        Privação de liberdade

 

Geni Oliveira

 

Art. 40                                                                                                                                                                      

1. Todo o animal pertencente a uma espécie selvagem tem o direito de viver livre no seu próprio ambiente natural, terrestre, aéreo ou aquático e tem o direito de se reproduzir.

2. Toda a privação de liberdade, mesmo que tenha fins educativos, é contrária a este direito.

(DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DOS ANIMAIS)

 

 

 

    Lagos refletindo árvores majestosas. Marrecos, patos e cisnes de pescoço preto deslumbrantes. Pareciam à vontade, nadando, descansando à sombra e alguns filhotes ensaiando voos curtos. Liberdade vigiada.

    Outros animais, em regime semiaberto, direito conquistado por bom comportamento. Hipopótamos gordos, lustrosos. Parece a vó Pietra, falou um dos meninos espiando através da cerca.

    Tartarugas à beira do lago, lagarteando. Um jabuti comendo uma folha verde, a única que brotou naquele terreno inóspito. Um passo de cada vez. Pressa para quê?

    Num lago menor, lontras faceiras nadando em círculos. Algumas saltitantes exibindo-se do lado de fora.

    Os jacarés, no seu reduto, bem distantes dos humanos. Hora da sesta.

    Macacos, numa ilha, mostravam suas habilidades nas cordas. Um deles trouxe uma laranja para uma macaca que não saía do lugar para nada. Aquela fruta devia estar muito gostosa, recém arrancada do pé.

    Zebras ostentando suas listras e a pergunta crucial da nossa existência. São brancas com listras pretas ou pretas com listras brancas?

    Um guanaco montava guarda a um muro. Ia e vinha compenetrado, no mesmo ritmo. Ou seria porque dispunha apenas daquela estreita faixa de sombra?

    Alces com seus galhos chocando-se, enquanto os outros assistiam. Briga ou brincadeira? Como saber?

    Próximo às churrasqueiras, um carro com o som no volume máximo. Em cartazes, junto às telas, recomendações para respeitar os animais e não gritar.

    Elefantes pesadões, parados, mudos. Se não tivesse tanta gente por perto eu teria me comunicado com eles. Aprendi num filme como se faz.

    Aves em gaiolas gigantescas, mesmo assim, um espaço limitado para animais que nasceram para voar pela amplidão do espaço. Olhos de águia, acostumados às alturas dos penhascos, vendo o mundo sob outro ângulo.

    Corujas lado a lado num poleiro, incomodadas pela luminosidade. Uma delas, sobre um toco de árvore, parecia um totem.

    Araras conversadeiras, o urubu-rei, um gavião. Cardeais, coleiros, caçados e engaiolados por décadas, mostrados em exposições. Vítimas da ignorância e da vaidade humana exibindo seu colorido e seu desencanto. O que será que fizeram para serem presos? Talvez seu crime seja invasão de espaço aéreo. Perderam a licença para voar.

    Os grandes felinos em prisões de segurança máxima. Jaulas com grades de ferro. Uma onça rugia inconformada. E o leão, sentado, com olhar triste, não tinha nada da majestade que lhe é atribuída.

    A girafa Dorotéia morreu no ano passado. Espero que não comprem mais nenhuma. Bastam os animais que já estão confinados. Até mesmo uma criança percebe que ali não é o seu habitat.

    No entanto, aos poucos, vamos nos humanizando. Não nos divertimos mais com as humilhações de animais em circos. Há adultos e crianças que se comovem ao ver animais aprisionados.    

    Nem tudo está perdido.

 

 

 

 

Tia Maria 

Geni Oliveira

    No pequeno cartaz, preso por um cordão ao pescoço, os serviços oferecidos: COMPRO OURO.CORTAR CABELO. PIERCING E TATOOS.

    Conhecida por Tia Maria. Bolsa a tiracolo, casaco verde, blusa cor de laranja e calça jeans. Sua voz rouca perde-se na rua movimentada onde moças e rapazes exercem a mesma função. Com o rosto enrugado, cabelos precisando de tintura e cheiro forte de cigarro que o perfume que usa não consegue disfarçar raramente é a escolhida.  O movimento é intenso na galeria neste verão que parece não ter fim. Ainda bem, pois no inverno é mais difícil trabalhar. Mãos e pés gelados, o vento fazendo redemoinhos pela rua e, como abrigo, apenas as marquises dos  prédios antigos.

    Quando consegue um cliente acompanha-o com discrição. Torna-se coadjuvante de suas histórias. Casamentos desfeitos, alianças que nada mais simbolizam,  apenas um pedaço de metal. Mães desesperadas desfazendo-se de joias que acompanham a família por muito tempo. Empregadas domésticas intermediárias de patroas falidas.

    Na sala com cheiro de mofo, alguns sofás gastos, um vaso com flores artificiais, quadros de paisagens na parede e revistas antigas sobre uma mesinha de canto, a transação ocorre rapidamente.  A avaliadora examina as peças e friamente estabelece o preço. Sabe que a maioria quer sair logo dali. Com a comissão garantida Tia Maria volta novamente para a calçada. Quando não consegue clientes, nada recebe e tenta ignorar o cheiro de café da lancheria em frente.  Não pode desanimar.  O que a filha ganha com faxinas é muito pouco e ela precisa ajudar a criar os netos.

    Tia Maria volta para casa ao anoitecer. Desce na  parada de ônibus e caminha de cabeça baixa pela vila onde mora. Sente dor nos pés e nas costas. Cumprimenta a filha e os netos, toma um café preto. Não tem nem vontade de conversar. O dia seguinte é uma sexta-feira. Dia bom para o trabalho. Há sempre alguém querendo cortar cabelo. E tatuagem está na moda.

    Tia Maria olha-se no espelho do quarto. Não gosta do que vê. Tem saudade da moça vaidosa que foi, menos amargurada, sem as marcas do tempo. Lembra-se bem do sonho de  menina.Um anel de 15 anos com uma pérola destacando-se entre pedrinhas que cintilavam como brilhantes. Talvez um dia faça uma loucura e se dê esse presente. Ensaia um sorriso. Precisa acreditar que vale a pena o trabalho que faz. Mesmo que, para muitas pessoas, ela continue invisível.

 

(História selecionada   no concurso Histórias de Trabalho/2012 promovido pela Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre- 19ª edição)

 

 

 Hoje amanheci velha

Geni Oliveira

 

    Hoje amanheci velha. Talvez por ter visto retratos da jovem que fui. Talvez por ter ouvido Oswaldo Montenegro cantando A Lista. E pensado no que perdi, não conquistei, deixei escapulir por covardia ou timidez. Amigos vislumbrados, amores apenas sonhados. Maldita timidez. Ou seria incompetência emocional? Talvez eu tenha nascido com essa deficiência. Dificuldade em discernir o melhor para mim. Seduzida pela pessoa errada. Ótimo nome para um filme. Mesmo das pedras brotam flores fulgurantes. E meus filhos radiantes nasceram desse amor. Sim, eu amei e me prendi a esse amor com unhas e dentes.  Perdi. Ou ganhei? Não sei.

    Hoje amanheci velha e cansada. Posso evitar os espelhos, preferir os menos iluminados, mas não posso evitar a constatação da pele flácida, ressecada, as pálpebras caídas. E, de repente, me deparar com uma foto sem retoques, com a barriga dividida em várias, esparramando-se despudorada sem o meu consentimento mostrou-me a implacabilidade do tempo. A lembrança que guardo de mim é mais condescendente. Nela, meus olhos brilham, meus cabelos são sedosos e iluminados, minha pele é lisa, sem manchas e minha barriga é aceitável.

    Hoje amanheci velha. Há uma lei que não se revoga. Não adianta abaixo-assinado, greve de fome, passeata. Fui atingida. A Lei da Gravidade venceu. Cumpra-se!

(Dez/2009

 

 

 

Mãos traidoras 

Geni Oliveira

 

    A conversa era sobre o respeito pelas prostitutas em Amesterdã. E falando em mulheres, disse Rafael, é uma pena que elas usem Chronos apenas no rosto. Eu descubro a idade delas  observando-lhes as mãos.

Sempre me interessei por leitura de mãos. Na palma e não no dorso. Linha do coração. da cabeça., da vida e do destino. Coisas de ciganos. Mas a idade?

    Michele, colega que considero bem jovem, arriscou-se. É bom lembrar que estávamos bebendo vinho. Rafael não teve dúvidas.Pegou a mão dela entre as suas, analisou as dobras dos dedos, a pele na mão esticada e adivinhou. A idade exata. Ela não gostou muito. Acho que idade é como o peso. Sempre queremos diminuir.

    Maria Rosa estendeu as mãos e foi logo explicando que sempre foram muito judiadas. Até que agora estavam mais de acordo com sua idade.Não as submeteu à análise do colega.

    Enchi-me de coragem e entreguei-lhe a mão esquerda na esperança de que estivesse mais preservada. Logo me vieram à cabeça os cremes esquecidos nas gavetas. O tempo avançando inexoravelmente, denunciando sua passagem sem dó nem piedade.

    Rafael começou:40, 50, 60 ...E, antes que ele continuasse avançando pelas décadas, gritei: 61!

    Assustado, ele largou minha mão e falou que nem deixei que ele adivinhasse. Realmente, o medo falou mais alto.

    Sei que envelhecer é algo natural, que a idade que temos não é tão importante assim. Não uso luvas para lavar a louça. Fico meio grega, quebrando tudo como se estivesse num ritual. Não cuido das minhas mãos, mas elas não tem o direito de me trairem.

    O dom do Rafael é bem interessante. Pode aproximar ou afastar as mulheres. Idade é um assunto muito delicado no mundo feminino. Com o tempo, talvez ele aprenda que, às vezes, errar é acertar.

 (Junho/2011)

  

 

 

 

Lauren e Eu

Geni Oliveira

 

    Inconformada por não participar da oficina Entre o Sena e o Guaíba, Lauren me ignorava. Para ela, tudo era possível. Bastava querer. Realista, eu tentava explicar-lhe os meus motivos. Em vão.

    Quando fui convidada para a oficina da Legalidade, ela se entusiasmou. Como dizer-lhe que  não seria mais a minha personagem? Até tentei.

    - Lauren, entende, já ficamos juntas por dois anos. Estás nos livros publicados.

    - Percebi a tua indiferença quando começaste a me excluir de crônicas e poemas. Não me conformo. Tudo bem, não vamos a Paris, mas posso participar da Legalidade.

    - Eras criança nessa época. Estou pensando num personagem diferente, um homem, talvez da Brigada Militar ou algum sindicalista.

    - Eu sou a tua personagem. Lembras do tio Antonio que colocaste em um conto de 1955 e do primo Luís? Eles bem que poderiam ter participado das manifestações em frente ao Piratini e me levado junto.  

    - Mas tem os exercícios de aula, Lauren. Alguns se repetem.

    -  Será um desafio. Velhos temas, novos contos.  

    - Não sei. Talvez.

    - Laisse-moi devenir l’ombre de ton ombre.

    - Não sejas dramática, Lauren. Onde aprendeste francês? Implorar para ser a sombra da minha sombra é demais.

    - Aprendi no ginásio. É só carregar nos erres e fazer biquinho como a Brigitte Bardot.

    - Estás desatualizada. Agora, quem enlouquece os homens é a Carla Bruni. 

    - Quando começa a tal oficina? Vou contigo.

    - Em março. Não vais encontrar nenhum personagem conhecido. Acho melhor não ires.

    - Ne me quitte pas, ne me quitte pas, ne me quitte pas, ela insiste com veemência  para eu não deixá-la.

    No primeiro dia da oficina, Lauren  de vestido vermelho , sapatos de  salto alto e uma  pasta sob o braço acompanhou-me ladeira acima até o Sindbancários. Determinada. Eu a criei assim. Quase sem perceber, dei o seu nome como minha personagem.

    E aqui estamos, Lauren e eu.