A MISÉRIA QUE NOS RONDA

06/07/2011 12:40

Apenas um relato

Geni Oliveira

    - Sereninho, sereninho! Se fizerem o que eu digo, ninguém se machuca. Motorista, fica calmo. Não liga o pisca!

Cena de filme. Luzes coloridas desfilavam vertiginosamente pela janela do lotação, buzinas de motoristas apressados, ultrapassagens perigosas, engarrafamento.

    Sentada bem atrás do motorista, percebi que um rapaz apontava um revólver.  Apertei a bolsa, sentindo a maciez do tecido. Tive vontade de abri-la, pegar a carteira e escondê-la. Isso me passou pela cabeça numa fração de segundos. Impulsivamente, num ato insensato,  fiz exatamente o contrário de todos os conselhos ouvidos para enfrentar esse tipo de situação. Perguntei ao assaltante se eu poderia pegar os meus remédios.

     Ele avaliou-me. Eu voltava da academia. Vestida de forma simples, camiseta branca e calça corsário preta. O tênis não era de marca. Confesso que tive medo que ele reagisse ao que estava escrito na camiseta. BEM CAPAZ.

    Simpático, ele sorriu para mim e falou com voz suave que eu poderia ficar com a bolsa. Recomendou que eu não mexesse nela, pois nunca se sabe o que uma bolsa contém.  Simpatizei com ele. Estaria eu sendo atacada pela Síndrome de Estocolmo?

    Sua companheira, de moletom cinza, capuz escondendo parte do rosto, estava visivelmente drogada. Cheiro enjoativo de maconha e de suor.  Dela eu tive medo. O silêncio causava mal-estar. Os minutos arrastavam-se.

    Por incrível que pareça, os marginais colocaram apenas as bolsas no saco de lixo. Quando eles  desceram, os passageiros  começaram a falar ao mesmo tempo e a ligarem de seus celulares.

    Ao descer, minhas pernas tremiam e eu suava frio. Mais uma vítima que nem faria parte da estatística da violência urbana.

    Naquela noite, apenas tomei um chá de camomila com leite morno. O sabor adocicado foi me acalmando aos poucos. Meus gatinhos olhavam-me de forma estranha. Percebiam algo no ar.   E, ao sentir aquele carinho felino todo especial, abraçada a eles, eu chorei. 

 

Utopia

Geni Oliveira

Se eu soubesse que o mundo se desintegraria amanhã, ainda assim plantaria a minha macieira. O que me assusta não é a violência de poucos, mas a omissão de muitos. Temos aprendido a voar como pássaros, a nadar como peixes. Mas não aprendemos a sensível arte de ser irmãos. (Martin Luther King).

 

    Não é nada fácil trabalhar em zona de prostituição. Becos, pessoas desocupadas nos bares e nas esquinas. Casas com cercas altas, construções simples de madeira à beira da “faixa” como era chamada a avenida em frente. Mulheres e meninas muito pintadas, cheirando a perfume barato faziam propaganda de si mesmas em roupas apertadas e curtas. Nem todas tinham a famosa carteira fornecida pelo Posto de Saúde nº 4. Cada um que se cuidasse a sua maneira. Chamavam os homens,alguns velhos conhecidos. Quando chegava navio era uma festa. Muitas horas extras, nem todas remuneradas.

    Ao lado dessas casas, a escola com o mesmo nome da igreja, ostentando-se aos pecadores. Mais adiante, a moradia das freiras e as casas de famílias que preferiam outras escolas onde suas crianças não teriam que conviver com os filhos “das mulheres da vida”.   Aprovada no concurso para professores, Lauren dirigiu-se à escola. Conhecia a fama do lugar. Assustada, evitava olhar diretamente para as pessoas expostas. A diretora esperava-a ansiosamente. Recebeu uma classe especial, com a recomendação de que não precisaria fazer nada, pois a maioria estava há cinco anos ou mais na 1ª série sem resultado algum. Como assim? Seria paga para não fazer nada? Não admitia tal possibilidade. Tinha pouco mais de 20 anos e sentia-se capaz de transformar o mundo. Persistência, chegando às raias da teimosia era uma de suas características.    

    Ao chamar o responsável por uma de suas alunas percebeu a dura realidade que os sonhos teimam em ocultar. A velha senhora, com roupas amarfanhadas, manchadas de gordura, um odor característico de falta de banho, abriu a boca onde faltavam alguns dentes e disse  que a filha estava trabalhando e que não tinha tempo de ir à escola. Era “prostiputa”. Desconcertada, Lauren falou sobre Cristina, a importância da ajuda da família, quando a avó a interrompeu para reclamar que agora a neta estava inventando moda. Queria tomar banho todos os dias. Não era fácil carregar tanta água da vizinhança.

    Após várias entrevistas inúteis, conversas com colegas que riam dela quando lhes mostrava os trabalhos de seus alunos, os “louquinhos da Lauren”, percebeu que estava sozinha e aprendeu a brigar por eles. Comentava somente em casa algo engraçado que falavam, não tinha cumplicidade na escola. Como da vez em que uma das alunas, ao ver uma figura de hipopótamo, disse que seria legal comê-lo com batatas. Teria que achar o seu jeito. Não desistiria. Precisavam de profissionais especializados. Na escola pública, uma utopia. Alguns de seus alunos eram afastados de casa e iam para o pátio da escola jogar, enquanto as mães atendiam os “fregueses”. Falavam disso com a maior naturalidade. Cada família tem seu código de Ética. O jeito era trabalhar, sem pensar no que o futuro lhes reservava. Acreditar.

    Faria o que estivesse ao seu alcance. Pesquisou, observou, criou o seu método, a cartilha que ficava trancafiada no armário para não ser rasgada ou  perdida. Contava histórias, cantava com eles, desenhava qualquer coisa, até mesmo tigres e leões reconhecidos somente com muita imaginação pelas crianças. A história A Bonequinha Preta lida em capítulos fez enorme sucesso. Cristina vibrava, pois a personagem era parecida com ela com seus coquinhos amarrados com fitas coloridas. Quando Lauren levou um gravador para a sala de aula, foi um evento. Todos queriam ouvir a própria voz. Ela guarda até hoje a fita gravada. Não é uma obra de arte, mas  não tem preço.

    Após alguns anos encontrou Cristina no centro da cidade. O mesmo sorriso, a mesma alegria de viver, os coquinhos trocados por tranças afro enfeitadas com tererês. Cheirava a Toque de Amor do AVON. Aproximou-se dela. Perguntou o que estava fazendo, em que trabalhava. A moça olhou-a com certa malícia e disse que atendia  pessoas. Seria vendedora? Psicóloga? Garçonete? Inúmeras possibilidades. Nessa época, pouca coisa surpreendia Lauren. Sempre que possível, tomara decisões, nem sempre as esperadas. Só não erra quem nada faz. Enquanto viver, continuará plantando suas macieiras.

(Conto selecionado na 17ª edição do concurso "Histórias de Trabalho" (2010).

 

 

Biel e as Estações

Geni Oliveira

    O menino olha a vitrine colorida, iluminada. Sabe que é verão. Apesar da neve, do pinheiro, das roupas de inverno do velhinho de barbas brancas. Lança um olhar comprido para as crianças com suas mães. Segura na mão o bilhete para o Papai Noel. Papel sujo, amassado com letra infantil. Melhor guardá-lo. Quem sabe no próximo Natal? Percebe a mulher atrás de si. Ela não desiste, pensa.  Lauren aproxima-se.

    Conheceram-se no inverno. O menino molhado, com frio. Ela o encaminhou para um abrigo. Biel fugiu. Na mochila sobre a cama,  os poucos pertences entesourados. A certidão de nascimento meio rasgada, a foto da avó, um carrinho sem rodas, uma chupeta, um par de meias de lã, um santinho. Santo Expedito, invocado nas horas de desespero. E um pedaço de pão.

    Lauren, voluntária presente nesse dia, foi encarregada de procurar o menino. No viaduto, a um canto, viu Biel. Amedrontado, coberto por um cobertor fedorento, com vários rasgões. Ele evitou o seu olhar. Pegou a mochila e agradeceu.

    Ela sabia que precisava ganhar a confiança do menino. Conversar com ele sem medo ou preconceito. Lembrava do que ouvira na reunião dos Parceiros Voluntários. A miséria não tem nada de romântico. Ela precisava ignorar o cheiro forte de urina, os cabelos loiros e sujos. Aos poucos ele contava a sua história. Preferia a primavera. Céu azul, nuvens brancas, desenhando animais no céu, árvores floridas. Ele ficava quase alegre. Não tinha medo de dormir na rua. Quando tomava banho no lago da Redenção, nas tardes mais quentes, algumas mães até deixavam que ele jogasse bola com seus filhos e o convidavam com o lanche.  A vida parecia mais normal, como quando morava com a avó. Sorriso contagiante e nos ombros frágeis toda a injustiça do mundo. No olhar, a sombra da infância perdida, do abandono.  Ele falou que odiava o outono.

    Por muito tempo, pensava que sua mãe fosse uma fada. Linda, sempre sorrindo. Sua avó chorava muito, um choro comprido. A filha ia e voltava como as estações. A velha senhora preocupava-se com Biel. Ele esperava a mãe por muito tempo, sentado na porta da casa. A mesma mãe que não hesitava em roubar o pouco dinheiro que tinham.  A mesma casa de onde fora expulso após a morte da avó numa tarde fria de maio.

    O outono voltará, ele pensou. Com suas folhas amareladas e mortas. E eu continuarei só. Tentarei cumprir a promessa que fiz à vó Maria. Serei um bom menino. Enquanto puder.

    Lauren falou sobre a Escola Aberta onde ele poderia ir quando quisesse. Talvez o ajudasse a cumprir a promessa feita.  Então ele decidiu:

    -Irei, dona Lauren. Se eu não aprender nada, pelo menos, a minha barriga vai parar de doer. A fome dói muito. Principalmente no inverno.

    Lauren sempre soube que o tempo tem significado diferente para os seres do Universo. E ninguém sente mais as mudanças de estações do que um menino morador de rua.

 

     

 Naquela vila

Geni Oliveira

 

    Linha do trem. Limite entre a vila e o que era conhecido como cidade. Do outro lado dos trilhos, as pessoas pareciam mais bonitas, felizes e usavam roupas de domingo todos os dias. Sabia-se de suas vidas pelas vizinhas, empregadas domésticas que transitavam entre os dois mundos.

    Do lado de cá, esgoto a céu aberto, sujeira nas ruas sem calçamento, casas de madeira muito próximas umas das outras. Moradias inadequadas, doenças evitáveis roubando vidas. Becos onde as crianças eram proibidas de passar e cantinas próximas ao porto onde mulheres de família nem se aproximavam, o que tranquilizava os maridos que iam lá jogar, beber e em busca de outros prazeres da carne.

    A mesma vizinha que benzia cobreiro brabo e ensinava como fazer xarope para tosse comprida era a fazedora de anjos da vila, resolvendo os problemas de muitas moças que davam provas de amor aos namorados. E quando a polícia dava batida, nem desconfiava daquela velha senhora tão frágil e prestativa.

    Os vizinhos protegiam-se e até mesmo os ladrões tinham certa ética. Exerciam suas funções em outros lugares. Todos na vila se ajudavam Pedir uma xícara de açúcar ou de arroz era comum. Conversar sobre os problemas do dia a dia também.  Terapia de pobre. Culpando-se por não terem estudado, achando-se menos inteligentes, vivendo da melhor forma possível. Gente humilde, sem carteira assinada, tendo que buscar água em barris em locais distantes após um exaustivo dia de trabalho.  Sempre com a esperança de dias melhores. No inverno, a vila transformava-se num atoleiro.

    O maior medo de todos era de incêndios. Havia muitos gatos na vila.  Enquanto seu pai não lhe explicou que fazer um gato era roubar energia elétrica, por mais que usasse a imaginação, Lauren não conseguia entender o que animaizinhos tão dóceis tinham a ver com incêndios. Até hoje não entende a origem dessa expressão.

    Todos na vila ainda se lembram do que ocorreu num dia quente de janeiro. Domingo, crianças em férias, almoço caprichado. Galinha assada, arroz, sagu e suco de uva. O ar parecia parado. Até mesmo os cachorros estavam quietos.  De repente, o som ensurdecedor dos bombeiros. Lauren saiu à rua. Gritaria, informações desencontradas. Muita gente correndo, alguns de pés descalços. O cheiro acre de fumaça causava tosse. Os olhos ardiam. 

    A casa da dona Marieta pegara fogo. Alguns diziam que ela corria o risco de perder tudo.  Lauren sempre ouvira dizer que a velha senhora não tinha nada. Um paradoxo. O caos instalado. Raiva, medo, sentimento de culpa, mágoa, compaixão. A miséria agravada pela desgraça.  

      Estarrecida, de olhos arregalados, Lauren observava o bailado das chamas. As labaredas tudo consumiam. Não só a casa, mas toda uma história, como diziam os mais velhos.  Em seus nove anos de vida, Lauren já vira muita coisa. A morte súbita da mãe de uma de suas amigas e o choque de vê-la de roupas pretas, a prisão de um colega de seu pai por assassinato e o suicídio de um  vizinho que se enforcara no ano anterior.

       A preocupação dos bombeiros era salvar as casas vizinhas. Por sorte, não ventava. Um dos soldados do fogo morreu, apesar dos esforços dos colegas para salvá-lo. Virou nome de rua em Rio Grande. Soldado Bombeiro Antonio Silveira Azevedo.

    Dona Marieta precisaria contar com a caridade da vizinhança e com a disposição da Prefeitura em ajudá-la. Alguns diziam que os políticos seriam prestativos, pois era ano de eleição.

    Na rua, ela ainda gritava desesperada. Não se conformava. Dizia  que precisavam salvar o Zé. Quando um dos bombeiros, num ato heroico,  entrou na casa com as paredes desabando, ela parou de gritar. A angústia fechava-lhe a garganta.

    Ao ver o jovem soldado sair dos escombros com seu bichinho de estimação, única companhia desde que ficara viúva, Dona Marieta não mais conteve as lágrimas. O Zé assustou-se   com tanta gente em volta e ficou com as penas arrepiadas. E até os bombeiros sorriram quando o papagaio  chamuscado,  ao ver a dona, encheu o peito de ar e falou o mais alto possível: A la pucha tchê,  não se assustemo!

  

 

 

Efeito Colateral

Geni Oliveira

 

    As gargalhadas eram tantas, que quase chorou de tanto rir. Quando pediu para sua mulher comprar uma sunga, Danúbio não imaginou que ela ficaria transparente ao ser molhada. Em pé na piscina chamava por ela que fingia não conhecê-lo. Feliz de quem consegue rir nessa situação. Ela não deveria tê-lo abandonado nessa hora, pois sempre repetia a frase O amor norteia a minha vida. Poderia, pelo menos, trazer-lhe uma toalha para evitar o vexame de desfilar pelo clube daquele jeito.

    Sentiu-se desamparado. Rira de nervoso, mas agora não estava achando graça nenhuma. Maria, o amor da sua vida, a mãe dos seus filhos olhava de longe. Talvez achasse que ele merecia aquilo, pois esquecera a velha sunga comportada que o acompanhava há tantos verões. O Criador não dorme. Ao caminhar rebolativa, Maria tropeçou e caiu. Bem feito! Talvez fossem escolhidos “O Casal do Ano’.

    Vestiram-se e saíram do clube. O carro estava a duas quadras de distância. Nem tudo é alegria num dia de domingo. No clube, comida e bebida à vontade, pessoas rindo à toa. Um menino  chorava na rua deserta. Aproximaram-se dele perguntando onde estava sua mãe. Ele apontou uma mulher com um lenço encardido na cabeça e com roupas de cores indefinidas acocorada na esquina com outras crianças. Como era o mais velho, tinha oito  anos , precisava pedir dinheiro e não gostava de fazer isso. Danúbio pensou imediatamente no Conselho Tutelar, mas sabia que, estando com a mãe, teoricamente as crianças estavam protegidas.

    Sentiu-se impotente diante dessa situação tão comum em nossas cidades. Aquele menino negro era mais uma vítima do Capitalismo, apenas um efeito colateral. Para quem são feitas as leis? Quem vai para a cadeia? O negro é ainda incompreendido, principalmente se for pobre. Como ser diferente se cabia ao branco interpretar o negro?

 

Promessa

Geni Oliveira

    O menino dorme na calçada. Maltrapilho, malcheiroso, apenas um papelão cobrindo seu corpo esquelético. Acorda sobressaltado quando a água da chuva molha seus poucos pertences. Dirige-se para o viaduto mais próximo. Não é bem recebido. O local está lotado.

    Alguém pôs fogo em jornais num tonel. Mês de agosto. Difícil de aguentar.

Para piorar a situação, ventava muito. O menino, num canto, tentava passar despercebido. Tinha fome. Talvez alguém dividisse com ele um pedaço de pão. Ou alguma alma caridosa trouxesse uma sopa quentinha. De olhos bem fechados, ele pensava na avó. Parecia ouvir a sua voz cansada:

    - Um dia, Gabriel, a terra cobrirá o meu corpo. Ficarás sozinho. Precisas me prometer que sempre serás um bom menino. Promete, Biel! Promete!

(02/07/2011)

 

 

 

Esperança

Geni Oliveira

 

    Lauren foi uma criança muito pobre. Morava numa vila operária com casinhas de madeira. Ainda se lembra do tapa-pó branco com laço azul-marinho, uniforme usado no Grupo Escolar onde estudava. Essa escola destacava-se das demais construções, pois era de material, com muitas janelas e possuía banheiros com vasos sanitários, um luxo na época para essa população tão carente.

    Ela sempre gostou de livros, de tocá-los, ler os prefácios e imaginar as surpresas reservadas por eles, um mundo de sentimentos e de emoções. Adorava quando chovia, pois a professora levava livros de histórias para a sala de aula, quebrando a rotina. Aventurou-se por lugares desconhecidos nos livros de Júlio Verne, deu asas à imaginação ao ler José de Alencar, conhecendo lugares distantes do país, chorando com suas protagonistas.Seu quarto com apenas uma cama, um guarda-roupa e uma prateleira com alguns livros e cadernos transformava-se de acordo com o que estava lendo. Os dias eram curtos para tantas leituras e havia noites em que o sono ficava em segundo lugar. Viajava no tempo e no espaço, por incrível que pareça, uma preocupação para sua mãe, analfabeta, que tinha medo que ela ficasse fraca da cabeça e com problemas nas vistas.

    Atreveu-se a escrever poesias quando se apaixonou perdidamente, aos treze anos, por Roberto, seu professor de Ciências. Leu “O Pequeno Príncipe” como toda adolescente de sua geração, apesar de nunca ter sido candidata à miss. Levou a sério a frase lida “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas” e foi além, responsabilizando-se também pelos que a cativaram, mas não leram ou não levaram a sério as palavras de Saint Exupéry. Assim, foi acumulando culpas ao longo do tempo.

    Nas suas leituras, apaixonada por História, conheceu Pandora. Invejava seus dons, pois era tímida e considerava-se sem graça e muito feia. Queria agradar a todos e foi afastando-se de si mesma. Muito do que se espalhou pela abertura da caixa de Pandora foi assimilado por ela, principalmente o medo e a raiva. Medo de não ser aceita, de não ser amada, caso se mostrasse tal como era.

    Sente-se, até hoje, responsável pelos males do mundo e não consegue se livrar da sensação de impotência que a invade ao ver um morador de rua. Considerar um sem-teto como morador de rua é uma hipocrisia e um paradoxo. Ele tem ou não onde morar? Se a rua é pública, como pode ser a morada de alguém? Ela não sabe lidar com essa situação. Sente raiva, muita raiva por tanta injustiça. E continua procurando a esperança que foi se esvaíndo pouco a pouco.

    E sem esperança, como viver?