A MORTE COMO PARTE DA VIDA

22/07/2011 18:49

Kevin

Geni Oliveira

Quando faço brincadeiras com meu gato,

 pergunto-me se ele não se diverte mais comigo

 do que eu com ele. (Michel de Montaigne)

 

    31 de julho de 2010. Esse foi o dia em que o Kevin morreu. Do seu nascimento sei apenas que nasceu em setembro de 1995, num sítio em Rio Grande. Filho de Maria Helena e muito parecido com ela. Enorme, parecia um gato do mato, chamando a atenção de todos. Presente de minha filha numa época de muitas perdas.

    Nos últimos dias do meu gatinho, de segunda a sábado, passei da esperança ao desalento. Dois dias de despedida e de muito carinho. Ele me olhava de uma forma especial. Talvez quisesse me consolar.

    Duas tardes de sol. Ele no meu colo. Eu nem ligava para o cheiro de xixi, um mau sinal. Algumas reações dele, como tentar caçar um passarinho no jardim do hospital veterinário, faziam- me acreditar que voltaria para casa. Assisti à morte de um cachorrinho e o desespero de sua dona. Apertava o meu gatinho bem junto ao peito. No fundo sabia que talvez ele também tivesse que partir.

    Há dois anos, ele tomava remédio para o coração. Era o nosso momento Kodak. Eu o enrolava com o edredom e colocava o remédio direto na garganta. Na primeira semana, encontrei um comprimido preso nos seus pelos. Na seguinte, um comprimido ficara numa dobra da minha  camisola. Ele e eu envelhecendo juntos. Ele muito mais rápido. Mesmo assim, ainda tinha vitalidade para perturbar a Meguinha, a gata que adotamos há alguns anos. Kevin foi pai e mãe para ela e nas noites frias de inverno era nele que ela se aninhava para dormir.

    No último mês, ele se afastou de nós. Não ficava mais na minha cama à noite e não permitia que a Meg dormisse com ele. Em sua sabedoria felina, preparava-nos para sua ausência.

    O ano de 2010 não foi nada fácil para o meu gatinho. Em fevereiro, internado com uma infecção. Muita falta de ar. Logo após a Páscoa, novamente adoeceu. Quando o via deitado com a barriga no piso frio do banheiro já sabia que ele não estava bem.

    Na última semana de julho, ele recusou-se a comer. Levei-o imediatamente para o hospital. Exames de sangue, eletrocardiograma, ecografia abdominal, exames de raios X. Nenhuma infecção, apenas o envelhecimento afetando órgãos vitais. Alimentação parenteral, muito carinho. Nada adiantou.

    Coube a minha filha a difícil missão de transformar em palavras o que eu já sabia. Momento difícil compartilhado com nosso amigo Paulo. A veterinária falou que saberíamos a hora. Que o bichinho pede.

    Embora eu não quisesse  entender o apelo daqueles olhos no fundo, a busca dele por um cantinho embaixo da mesa,   confiava plenamente na veterinária. Seria egoísmo prolongar sua agonia.

    Autorizei a eutanásia e fiquei ao lado dele, como sempre fizera. Ele confiava em mim. Com o coração apertado peguei a sua patinha, tentando segurar as lágrimas , aguardando o efeito da medicação.  E ele se foi.

    Minha filha e eu voltamos para casa. A caixa de transporte vazia.

    Nos primeiros dias, eu tinha a impressão que o encontraria a minha espera ao lado da porta. Meguinha é uma gatinha especial, muito amada. Cega e muito arisca, eu é que procuro por ela quando chego.

 

Morte

Geni Oliveira

    Quando somos crianças, lidamos com a Morte de uma forma mítica. Assombramo-nos com histórias, vemos fantasmas em todos os cantos e até brincamos com eles.Tudo fica por conta da fantasia. A Morte é algo muito distante de nós.

    Quando nos tornamos jovens, percebemos a sua proximidade, mas julgamo-nos imortais, apesar de perdermos, muitas vezes, nossos próprios amigos. Gostamos da aventura, do perigo e de desafiá-la.

    Com o tempo, percebemos que Ela nos vence, pois somos mortais, mesmo não querendo aceitar esse fato. Questionamos, procuramos motivos, pretextos considerados fortes o suficiente para afastá-la do nosso caminho.

    À medida que amadurecemos, chegamos à conclusão que ela é inevitável. Procuramos compreendê-la, aceitá-la e passamos a buscar apoio na Ciência, na Religião, na Filosofia. Percebemos que precisamos dessas supostas explicações e que somos apenas mortais.Descobrimos que querer que alguém muito querido morra é um ato de Amor.

    Finalmente aceitamos que vamos morrer, mas queremos, no mínimo, que a Morte nos leve apenas a Vida sem nos roubar a Dignidade.

(Abril de 2005)

  

  

Cobaias de Deus

Geni Oliveira

 

    O que sabemos dos nossos colegas e mesmo dos nossos amigos? Vislumbramos algumas emoções, lemos nas entrelinhas apenas aquilo que nos é permitido por eles. Seus medos, suas frustrações permanecem em segredo que, muitas vezes, custam-lhe as próprias vidas. 

     No entanto, que direito temos de perguntar-lhes o que lhes acontece, o porquê de suas tristezas? Até onde podemos ir e até onde queremos realmente conhecê-los se nem conhecemos a nós mesmos?

     Há um confronto entre o que somos,  o que é verdade para nós e o que os outros pensam. O preconceito, a discriminação, a nossa própria humanidade com tentativas de erros e de acertos nos leva por caminhos nunca antes imaginados.

    Quando uma situação foge ao nosso controle, sentimo-nos impotentes. Por vezes, esquecemos a nossa própria mortalidade e que somos simplesmente cobaias de Deus como um dia, amargamente, o poeta Cazuza constatou.

(Abril/2005)